Mozilla apaga promessa de "nunca vender" seus dados, entenda as implicações
Mozilla, a empresa por trás do navegador de código aberto Firefox, sempre se orgulhou de se diferenciar de gigantes da tecnologia como o Google. Ao contrário do Google, que tem um longo histórico de coleta de dados dos usuários mesmo quando você tenta dizer "não", a Mozilla sempre insistiu — e geralmente cumpriu — que os controles de usuário no Firefox não são apenas uma cortina de fumaça e que a privacidade é sua prioridade. A seção de perguntas frequentes sobre privacidade da Mozilla ainda traz um subtítulo em negrito: "Defendemos as pessoas acima do lucro."
A promessa que não está mais lá
No final de fevereiro, a Mozilla atualizou sua página de perguntas frequentes sobre privacidade (Privacy FAQ), a FAQ de privacidade do Firefox e introduziu os Termos de Uso (TOU) do Firefox. As mudanças nos três documentos causaram alvoroço na comunidade.
Começando pelos Termos de Uso: os Termos de Uso do Firefox, lançados no final de fevereiro, incluíam uma linguagem que deixou muitos usuários confusos. Especificamente, afirmava que:
“Quando você faz upload ou insere informações no Firefox, você nos concede uma licença não exclusiva, livre de royalties e mundial para usar essas informações a fim de ajudá-lo a navegar, experimentar e interagir com o conteúdo online, conforme indicado pelo seu uso do Firefox.”
O que parecia ser uma nova política gerou uma enxurrada de comentários no Reddit, com usuários criticando a redação, considerada vaga e preocupante. Alguns alarmaram-se com a ideia de que a Mozilla poderia acessar tudo o que fosse digitado no navegador. Um usuário desabafou:
"Pelo amor de Deus, eu não quero que vocês usem informações digitadas no Firefox, Mozilla. O que eu digito na janela do navegador é entre mim e o serviço para o qual estou enviando a informação, não para vocês."
Outros ainda tentaram dar o benefício da dúvida:
"Acredito que a Fundação Mozilla está tentando fazer a coisa certa, mas esse tipo de linguagem nos termos é propenso a abusos. Espero que esclareçam isso."
Em resposta à polêmica, a Mozilla publicou um post no blog tentando esclarecer a questão:
"Vimos alguma confusão sobre a linguagem referente às licenças, então queremos esclarecer. Precisamos de uma licença para permitir que algumas funcionalidades básicas do Firefox funcionem. Sem ela, não poderíamos usar informações digitadas no Firefox, por exemplo. Isso NÃO nos dá propriedade sobre seus dados ou o direito de usá-los para qualquer coisa além do que está descrito no Aviso de Privacidade."
Mas essa explicação não convenceu a todos, pois a Mozilla não deixou claro por que precisa acessar o que os usuários digitam.
Alguns dias depois, em 28 de fevereiro, a Mozilla fez outra tentativa de acalmar os usuários, revisando os termos mais uma vez. Agora, a seção polêmica foi reformulada para:
"Você concede à Mozilla os direitos necessários para operar o Firefox. Isso inclui o processamento dos seus dados conforme descrito no Aviso de Privacidade do Firefox. Também inclui uma licença não exclusiva, livre de royalties e mundial para atender às suas solicitações com o conteúdo que você insere no Firefox. Isso não dá à Mozilla qualquer propriedade sobre esse conteúdo."
A mudança pareceu tentar tranquilizar os usuários, garantindo que a Mozilla não reivindica propriedade sobre os dados digitados. No entanto, a nova redação continua vaga, redirecionando os usuários para o Aviso de Privacidade do Firefox para entender exatamente como seus dados podem ser usados.
A polêmica não parou por aí. Além dos Termos de Uso, a Mozilla também fez alterações na FAQ de Privacidade e na FAQ do Firefox, removendo trechos que antes eram considerados promessas sólidas de proteção à privacidade.
Anteriormente, a FAQ de Privacidade afirmava com todas as letras que a Mozilla "não vende dados sobre você", nem compra dados de terceiros. Veja abaixo uma captura de tela da versão de 6 de fevereiro:
Na versão atualizada, o texto mudou para: "A Mozilla não vende dados sobre você da maneira que a maioria das pessoas pensa sobre 'venda de dados'." Isso levanta a questão: será que você se encaixa na categoria de "maioria das pessoas" e o que isso realmente significa?
(Versão atual da FAQ de Privacidade da Mozilla)
No post de 28 de fevereiro, a Mozilla justificou a mudança alegando que a definição legal de "venda de dados" é muito "ampla e em constante evolução."
Ainda mais preocupante para os usuários foi a remoção completa da promessa explícita da Mozilla de "nunca vender seus dados", que antes aparecia na FAQ de Privacidade do Firefox. Antes, a resposta para a pergunta "O Firefox vende seus dados pessoais?" era clara:
"Não. Nunca vendemos e nunca venderemos. Além disso, protegemos você contra muitos anunciantes que fazem isso."
Agora, essa seção simplesmente desapareceu da FAQ de Privacidade do Firefox:
A seção parece estar em revisão, mas a remoção abrupta gerou ainda mais dúvidas.
A lenta transição da Mozilla para o setor de publicidade
A Mozilla sempre defendeu a privacidade como um de seus princípios fundamentais, prometendo nunca vender dados. No entanto, nos últimos anos — e, mais recentemente, nos últimos meses — essa promessa tem sido testada.
Em outubro de 2023, a Mozilla confirmou um movimento que muitos já previam: sua entrada no setor de publicidade digital. Em um post no blog, o presidente da Mozilla, Mark Surman, afirmou que o sistema de anúncios atual está "fundamentalmente quebrado" e sugeriu que a Mozilla poderia contribuir para consertá-lo ao experimentar com publicidade.
Assim como Google e Microsoft, que lançaram tecnologias como a API de Seleção de Anúncios da Microsoft e a API de Público Protegido do Google, a Mozilla está tentando conciliar privacidade com publicidade. Mas, ao contrário dessas empresas, a Mozilla nunca teve a publicidade como parte essencial de seu DNA — até agora.
O movimento ganhou força no ano passado, quando a Mozilla adquiriu a empresa de métricas de anúncios Anonym, alegando que ajudaria a melhorar o direcionamento de anúncios sem comprometer a privacidade. Pouco depois, a Mozilla introduziu o Privacy-Preserving Attribution (PPA), um recurso ativado por padrão no Firefox, projetado para permitir que anunciantes meçam a eficácia de seus anúncios sem rastrear usuários de maneira invasiva.
Hora de abandonar o Firefox?
As recentes mudanças nos Termos de Uso e na FAQ de Privacidade refletem a crescente aproximação da Mozilla com o setor de publicidade digital.
Enquanto a empresa se envolve cada vez mais com anúncios, suas antigas promessas sobre privacidade começam a parecer menos concretas. O que antes era uma posição inabalável contra a venda de dados agora parece estar sendo suavemente reformulado. Para muitos usuários, surge a pergunta: até onde a Mozilla está disposta a ir?
A resposta ainda não está clara, mas uma coisa é certa: dizer adeus àquela promessa ousada — embora idealista — de "nunca vender seus dados" é um momento triste. Pode ser o fim de uma era. E, talvez o mais preocupante, esse fim pode ser inevitável.