O retorno dos anúncios: a assinatura com anúncios da Netflix marca o fim de uma era dourada
Até a metade dos anos 2000, se você estivesse cansado da TV comum, não havia muitas alternativas: você poderia pagar por uma TV a cabo ou via satélite (com anúncios incessantes), alugar um filme, comprar um CD, ou baixar algo pirateado da Internet. Estas opções não eram muito práticas e, por isso, o surgimento dos serviços de streaming on-demand trouxe consigo a praticidade. Inaugurando o seu serviço de streaming em 2007, a Netflix deu cara à toda uma nova era.
De início, os serviços de streaming se apresentavam como uma alternativa barata e sem anúncios à TV a cabo. Eles nos libertaram das restrições impostas
pela programação fixa e nos introduziram às maratonas de séries e filmes. No entanto, assim que conseguiram capturar nossa atenção, acabaram se tornando apenas uma versão para Internet da TV tradicional ao exibirem anúncios.
Mas o príncipe encantado não voltou a ser um sapo de um dia para o outro. Nos últimos anos, os protagonistas do badalado setor de streaming adaptaram-se a um modelo compatível com anúncios. A HBO Max e a Paramount+ introduziram a compatibilidade com anúncios em Junho. A Discovery+, da Warner Bros., lançada em 2020, conta com versões com e sem anúncios desde o seu lançamento. A Peacock da NBC, lançada no mesmo ano, foi ainda mais além, oferecendo aos usuários não apenas uma, mas duas assinatura compatíveis com anúncios: uma delas é completamente gratuita e a outra é “premium”(sic!). Há também o Hulu, com compatibilidade com anúncios desde o início, que apenas em 2015 lançou uma versão ad-free.
Enquanto todas estas plataformas e empresas por trás delas estão competindo pela nossa atenção e o nosso dinheiro, elas tentam ainda competir com a Netflix. Com 223 milhões de assinantes ao redor do mundo, a Netflix se mantém como o maior serviço de streaming independente do mundo e está em busca de ultrapassar o maior de todos, a Disney, com todo o seu conteúdo variado.
Goste você ou não, a Netflix se tornou sinônimo de serviço de streaming (afinal, não é todo serviço de streaming que consegue alcançar o território dos memes). Sua força cultural é inegável. É por isso que a tentativa da Netflix de converter-se em uma plataforma com compatibilidade para anúncios representa o fim de uma era. A plano com anúncios da Disney+, a ser lançado em Dezembro, faz com que esta transição seja ainda mais óbvia e definitiva.
A adoção de um modelo com base anúncios por parte da Netflix pode não te afetar diretamente, mas é prejudicial para a sua experiência de streaming e para a sua privacidade a longo prazo. Vamos olhar mais de perto para esta nova opção da Netflix, para o porquê de ela ter sido lançada agora e o que esperar dela.
A promessa quebrada
A decisão da Netflix é significativa porque a empresa sempre prometeu não se render aos anúncios. Há apenas dois anos, o CEO da Netflix Reed Hastings disse que exibir ads na plataforma mancharia a imagem da empresa.
Em Janeiro de 2020, Hastings explicou que construir uma plataforma de publicidade viável implica seguir os passos dos gigantes do mercado de anúncios, como o Google e o Facebook, que coletam quantidades enomes de dados para rastrear os usuários. Em teoria, a Netflix jamais quis fazer isso. “Eles estão reunindo tantos dados, de tantas fontes diferentes... é preciso gastar muito com isso e rastrear localização e vários outros tipos de dados, e nós não estamos interessados em fazer isso.” Além disso, a Netflix não parecia estar interessada em colocar-se em uma luta contra órgãos reguladores da União Europeia e da Califórnia, que vem reforçando leis de privacidade, disse ele.
Nas palavras do CEO da Netflix: “Nós queremos ser uma trégua segura; você pode inspirar-se, divertir-se, curtir e relaxar, sem nenhuma controvérsia ligada à exploração de usuários através publicidade.”
Bom… não foi bem assim.
E o que vem aí?
Em Junho de 2022, a Netflix anunciou que adicionaria uma assinatura com exibição de anúncios. A empresa apresentou este não como uma mudança fundamental em seu modelo de negócio, mas sim como o lançamento de uma funcionalidade nova e fascinante. “Nós vamos adicionar uma camada de anúncios para a Netflix; mas não vamos adicionar publicidade na Netflix da forma como você conhece hoje,” disse o co-CEO da Netflix Ted Sarandos.
A nova assinatura “Básica com Anúncios”, anunciada em novembro, custa US$6,99 por mês, US$3 a menos do que a segunda assinatura mais barata da Netflix, sem anúncios, no plano “Básico”. Por causa de US$3 por mês, os usuários precisarão lidar com 4 a 5 minutos de anúncios por hora. A Netflix teria dito aos anunciantes que os usuários seriam expostos ao mesmo anúncio até 3 vezes por dia o que, no entanto, não serve de consolo, já que ainda se trata de uma assinatura paga. Outra desvantagem óbvia da versão com anúncios é que algumas séries podem acabar saindo da plataforma. Isso porque vários grandes estúdios supostamente não concordam com anúncios interrompendo seu conteúdo original (e isso é compreensível). Antes, a Netflix afirmou esperar que cerca de 85% a 90% de seu conteúdo será incluído na assinatura com anúncios. No entanto, não se sabe exatamente quanto isso representa em números absolutos dentro de sua biblioteca.
Os anúncios terão de 15 a 30 segundos, e serão mostrados tanto no início, quanto no meio do conteúdo. A qualidade do vídeo na versão com anúncios é limitada a 720p e, diferente de outros planos da Netflix, os assinantes do plano “Básico com anúncios” não poderão baixar o conteúdo para ser assistido offline (o que faz sentido já que, assim, eles não seriam atingidos pelos ads).
Na prática, isso significa que, se você gasta 3 horas por dia assistindo Netflix com anúncios, você verá uma hora de anúncios por mês. Em média, no entanto, os usuários passam muito mais tempo em serviços de streaming. Em 2019, a Netflix anunciou que um assinante da plataforma nos Estados Unidos assiste cerca de 2 horas de conteúdo por dia e, em 2020, esse número alcançou 3,2 horas. Sem levar em conta o efeito da pandemia, o tempo em potencial de exposição a anúncios é enorme, assim como o possível lucro com eles.
Screenshot do site da Netflix
Os anunciantes, porém, embora interessados na investida da Netflix, não estão dispostos a pagar um valor muito alto para anunciar na plataforma. De acordo com o Wall Street Journal, em vez de cobrar US$65 para que um anúncio atinja 1000 espectadores, como definido anteriormente, a Netflix precisou aceitar algo em torno de US$45 a US$55. Em um primeiro olhar, isso pode parecer intrigante: uma plataforma tão popular que faz com as pessoas passem horas grudadas na tela de seus computadores certamente não deveria ter problemas em cobrar quanto bem entender.
Mas há um problema: a falta de infraestrutura da Netflix para o rastreamento voltado para a publicidade. “Algumas marcas têm estado relutantes em pagar um valor premium para uma plataforma que não oferece um direcionamento de anúncios sofisticado,” escreveu o WSJ. De fato, até a agora, a Netflix planeja dirigir anúnсios apenas baseados nos gêneros assistidos pelo usuário (por exemplo, ação, romance) e seu país.
Pode ser que isso não pareça tão ruim: a Netflix manterá sua assinatura ad-free, e aqueles que não podiam pagar pela Netflix antes podem agora arcar com o seu custo. Não é grande coisa se um serviço de streaming souber onde eu estou e as minha preferência por ficcção científica ou comédias românticas. A questão, no entanto, é outra: o que vemos agora é apenas o início, e não vai demorar para que a Netflix mergulhe de cabeça na publicidade direcionada e comece a coletar diferentes tipos de dados pessoais. Quanto mais, melhor. Isso é inevitável se a plataforma realmente quiser lucrar com anúncios.
Publicidade direcionada e rastreamento: começando devagar, mas avançando rápido demais?
A Netflix não esconde o fato de que este é apenas o início de seu negócio publicitário e que os anúncios direcionados não serão rudimentares para sempre. Durante uma reunião de apresentação de resultados em Outubro, o COO líder de produto da Netflix Greg Peters chamou atenção para o fato de que a empresa está em busca de dominar o mercado de anúncios e não está em um ritmo veni-vidi-vici, mas sim “engatinhar-caminhar-correr.”
Primeiramente, a Netflix quer iniciar a personalizar seus anúncios com base no gênero e na idade dos usuários. Ela já começou a coletar esta informação de no momento de inscrição, exigindo que aqueles que quiserem se utilizar a versão com anúncios informem o dia de seu nascimento e gênero.
Foto: Melanie Deziel/Unsplash
Após entrar em um modelo de negócio voltado para a coleta de datos pessoais com finalidade de uso publicitário, é mais difícil se afastar dele. No caso da Netflix, o serviço de streaming tem planos de ir ainda mais adiante. Peters disse que, a longo prazo, a Netflix quer tornar sua audiência “completamente targetizável.” Isto é, a empresa quer “uma audiência 100% logada, totalmente abordável, totalmente targetizável” e “começar a incluir métricas de direcionamento com o passar do tempo.” Isso é apenas outra forma de dizer: “A Netflix buscará saber tanto quanto possível sobre você para te bombardear com anúncios mais e mais específicos.”
O que isso significa na prática ainda é um mistério. De acordo com o Digiday, a líder de anúncios da Netflix Jeremi Gorman afirmou que pode ser que a Netflix também mostre “anúncios baseados em comportamento”, mas não deu mais nenhum detalhe. No marketing, targetização comportamental é sinônimo de separar os usuários em perfis específicos para que os anunciantes possam exibir anúncios completamente personalizados.
Agora, nós podemos apenas especular sobre o que será da aventura da Netflix no universo dos anúncios. Gorman afirma que o gigante dos streamings não permitirá que os dados de usuários do plano com anúncios da Netflix seja usado com propósitos de publicidade direcionada fora da plataforma. No entanto, ela não disse se a Netflix usaria dados de terceiros para seus ads. No que se refere a isso, a Netflix já deu um primeiro passo ao registrar os endereços de email dos usuários, que podem complementar com informações de compras fora da plataforma, status de renda e outros dados coletados por terceiros.
Mais barato para você, mais lucro para mim
Ao anunciar o lançamento da compatibilide com anúncios em sua plataforma, a Netflix disse que isso a ajudaria a ganhar uma nova clientela, levando a diversão do streaming para uma audiência que não ganha tão bem. “Até agora, nós deixamos de lado um tipo de consumidor importante que diz: 'Ei, a Netflix é muito cara para mim e eu não me importo com publicidade',” disse Saranos em Junho. Nós nos perguntamos que diferença US$3 podem fazer, isso se fizer alguma mas, mesmo ignorando este ponto, não há dúvidas de que o que realmente move a Netflix é o lucro, e não necessariamente de novos clientes. Na verdade, uma recente pesquisa da S&P Global mostrou que há apenas “uma leve correlação” entre a encolha do consumidor por serviços de streaming sem anúncios e as suas rendas.
A Netflix afirmou esperar ganhos “positivos ou neutros” com os anúncios a curto prazo e, com passar do tempo, pretende crescer significativamente. Segundo a previsão de Michael Nathanson, analista do Wall Street, os anúncios poderão trazer até US$1 bilhão de lucro para a Netflix no próximo ano e US$2,7 bilhões até 2025. Em 2027, estes ganhos poderão alcançar US$3,5 bilhões, compondo 9% dos ganhos totais da empresa.
É mais provável que a nova opção de assinatura com ads atraia mais aqueles que já são assinantes, ao invés de atrair novos consumidores. Nathanson prevê que o número de usuários do novo plano chegará a 21,5 milhões em 2023, enquanto a Netflix como um todo ganhará apenas 4,1 milhões de novos usuários. Em meio a estas mudanças, a migração dos usuários já existentes dos planos mais caros, sem anúncios, para os planos mais baratos e com anúncios beneficia diretamente a Netflix. E é aí que está a questão.
Foto: JESHOOTS.COM/Unsplash
No ano passado, o CFO da Discovery+, Gunnar Wiedenfels, revelou que a versão com anúncios de sua plataforma estava trazendo mais lucro por usuário se comparada a versão sem anúncios. Wiedenfels chamou atenção para o fato de que os concorrentes do serviço estavam “experienciando métricas de performance parecidas.”
Assim, fica claro que o plano com anúncios da Netflix pode gerar mais lucro à empresa do que a versão mais cara, sem anúncios. Talvez não seja coincidência que o Hulu, um dos primeiros a adotarem o modelo compatível com anúncios, cobre US$14,99/mês no plano sem anúncios e apenas metade deste valor (US$7,99/mês) em seu plano com anúncios. A empresa, no entanto, compensa essa diferença com longas pausas comerciais. Usuários reclamam do fato de precisarem assistir até 5 minutos de comerciais antes do início das séries e filmes e de serem interrompidos com várias pausas de 90 segundos durante um episódio curto. Os fóruns do Hulu estão repletos de reclamações de que os anúncios estão ficando "piores" com o passar do tempo. Além disso, alguns usuários afirmam ainda estarem vendo anúncios após mudarem para a assinatura ad-free. Se esse for o futuro da Netflix, a situação é desoladora.
E o que esperar do futuro?
Com a adoção da compatibilidade com anúncios por parte da Netflix e da Disney+, a indústria dos serviços de streaming se deteriora. É muito provável que, com o passar do tempo, o plano sem anúncios da Netflix ficará mais caro, enquanto a diferença de valor com o plano com ads será maior. Se isso acontecer, a Netflix pode forçar usuários que preferem serviços de streaming sem anúncios a recorrer à pirataria, que inclusive vem ganhando força novamente.
Além disso, esta novidade da Netflix pode ser uma ameaça à privacidade. Até agora, a Netflix afirma que apenas coletará alguns dados pessoais de usuários do plano com anúncios para mostrá-los anúncios personalizados no futuro. No entanto, não está claro o que acontecerá com estes dados se os usuários decidirem mudar para o plano sem anúncios. Como podemos ter certeza de que as informações coletadas pela Netflix não serão usadas para a publicidade direcionada fora da plataforma? Onde está a garantia de que, no futuro, a Netflix não usará as mesmas ferramentas de coleta de dados para os usuários ad-free?
Pode ser que esta seja apenas uma visão muito pessimista, mas a história mostrou que, quando se trata de aumentar a coleta de dados para a publicidade direcionada, não há final feliz para o usuário e a sua privacidade. O principal objetivo de qualquer negócio é lucrar enquanto faz parecer que o usuário é a sua prioridade. A Netflix não é uma exceção. Resta agora esperar para ver até onde a empresa pretende ir, especialmente agora que suas críticas à adoção de anúncio já não valem de nada.
Nós podemos apenas especular o que levou a Netflix a abandonar o modelo completamente ad-free. É possível que se trate da concorrência cada vez maior e do fato de que vários rivais da espresa estejam adotando os anúncios. No entanto, a Netflix não está em uma situação finaceira ruim. A empresa afirmou esperar um lucro anual de US$5 a US$6 bilhões neste ano, ao mesmo tempo que afirma que seus concorrentes “estão todos perdendo dinheiro” ao tentar impulsionar o crescimento em seu número de assinantes. A Netflix anunciou que já não vai realizar uma previsão de crescimento no número de seguidores, mas sim focar no lucro. Isso tudo é perfeitamente compatível com o conceito de ganhar mais dinheiro a partir daqueles que já utilizam a plataforma, inclusive exibindo anúncios.
O que estamos acompanhando agora é a tentativa da Netflix de ocupar duas posições no mercado: “explorar os usuários através de anúncios” (nas palavras do próprio CEO da empresa) enquando tenta manter sua imagem de paraíso sem anúncios intacta. Mas esta imagem já está abalada. A era dourada dos serviços de streaming sem anúncios está chegando ao fim, e a publicidade venceu. Mas não há motivo para desespero: o AdGuard continuará te protegendo contra anúncios em apps e sites e seguiremos trabalhando para adaptar nosso produto para novos desafios.