Proteção antirrastreamento da Apple levará a um aumento em seus lucros com publicidade
A Apple sempre se apresentou como o ápice da privacidade, já que os seus lucros não vêm majoritariamente de anúncios. “Você não é o produto. Você é nosso cliente. Você é valioso, e nós valorizamos a sua experiência de usuário” disse Tim Cook, CEO da Apple, em sua famosa fala de 2018.
E, diferentemente dos seus maiores e melhores competidores, a Apple parecia realmente ter se compretido com esta fala. Os lucros da Apple devem chegar a 5 bilhões de dólares este ano, mas isso não é nada perto do dinheiro que o Google e o Facebook ganham com anúncios. O Google lucrou surpreendentes 209 bilhões de dólares apenas através de anúncios, enquanto a Meta ultrapassou os 100 bilhões pela primeira vez, chegando aos 115 bilhões de dólares.
Estes números poderiam ser muito maiores se a Apple não tivesse passado a impedir o rastreamento dos dispositivos de seus usuários no ano passado. Sua nova política de privacidade, conhecida como App Tracking Transparency (ATT), exige que os apps solicitem a permissão do usuário para rastreá-lo durante o acesso a outros aplicativos ou websites, fazendo com que seja mais fácil evitar anúncios dirigidos e rastreadores. Isso, de fato, ocorreu: apenas 25% dos usuários de iOS do mundo todo permitem deliberadamente que os aplicativos os rastreiem.
Divisor de águas
A batalha da Apple contra os rastreadores de terceiros causou um alvoroço no mercado global de anúncios, gerando protestos por parte de anunciantes e, principalmente, do Facebook. E a Meta tem bons motivos para não encarar isso com bons olhos. A Apple dificultou muito o acesso de plataformas de terceiros aos dados pessoais dos usuários. Este tipo de dado é crucial para a propaganda dirigida, a principal fonte de renda do Facebook. Ads superpersonalizados dão mais lucro do que ads aleatórios ou que se baseiam em dados pouco precisos. Por isso, o Facebook está perdendo dinheiro: estima-se que a funcionalidade antirrastreamento da Apple custará à Meta 12,8 bilhões de dólares este ano.
O Facebook será o mais atingido, mas outros gigantes da tecnologia também sofrerão algum impacto: o YouTube, de propriedade do Google, pode chegar a perder 2,2 bilhões de dólares; a Snap, 456 milhões; e o Twitter, 323 milhões de dólares. Empresas menores também sofreram danos com a batalha atirrastreamento da Apple, já que, agora, conseguir novos clientes ficou mais caro.
Mas quem se beneficia com isso tudo? A Apple dirá que é você, o usuário, que se beneficiará com menos tráfego e mais privacidade. Isso pode não ser mentira (a menos que as restrições de rastreamento possam ser contornadas pelos gigantes da tecnologia, o que parece mais e mais plausível a cada dia). Porém, o mais provável é que a própria Apple é quem mais sairá ganhando.
Vem aí um novo império do mercado de anúncios?
Em um novo relatório sobre os impactos da nova política de privacidade da Apple, reportou-se que os anunciantes de aplicativos mobile estão começando a gostar da Apple. Uma pesquisa realizada pela empresa de marketing de performance Appsumer sugeriu que a funcionalidade antirrastreamento gerou um crescimento na adesão ao Apple Search Ads, dando à empresa com sede em Cupertino a possibilidade de bater de frente com o duopólio do Google e do Facebook.
A adesão ao Apple Search Ads por parte dos anunciantes cresceu de 4% a 94.8% ao longo dos anos, enquanto o mesmo serviço oferecido pelo Facebook perdeu 3% de adesão, chegando a 82.8% e, no caso do Google, caiu de 96.5% para 94.8%. Não é surpresa que, talvez, os anunciantes tenham começado a gastar mais dinheiro com a Apple, e sua share-of-wallet (SOW) aumentou 5%, chegando a 15%. Em contraste, a do Facebook chegou a 28%, caindo 4%, e a do Google se manteve praticamente a mesma (de 35% a 34%).
A Apple parece ter descoberto uma nova fonte de lucros da qual ela costumava se manter afastada com orgulho. E se há alguém que entende bem sobre como funciona a publicidade online, este alguém é a Apple. Já faz anos que a empresa vem apresentando anúncios de aplicativos de terceiros em redes sociais e outras plataformas, estimulando os usuários a baixá-los de sua loja e não do site dos desenvolvedores. Assim, a Apple ganhou uma fortuna em comissões por compras in-app.
Apesar de já dominar uma grande parte do mercado de anúncios, a Apple ainda precisa trabalhar duro para alcançar os líderes do ramo. E ela, de fato, está fazendo isso.
A Apple anunciou recentemente que irá adicionar mais duas caixas de anúncios na App Store. Desenvolvedores poderão comprar mais espaço para publicidade na página central "Hoje" ou nas páginas individuais de cada app. Atualmente, a Apple apresenta anúncios no painel "Sugerido" da página de busca da App Store e no topo dos resultados em uma busca relevante. Assim, se você procurar "treinamento aeróbico" na App Store, ela vai te mostrar um ad de um aplicativo de corrida, por exemplo. Em Setembro, a Apple revelou que a nova configuração dos anúncios será lançada na época de festas de fim de ano que, por tradição, é espcialmente lucrativa para os anunciantes.
Uma das coisas que faz com que a Apple se coloque em uma posição moral mais elevada diante dos seus competidores é que ela somente permite que páginas aprovadas promovam anúncios de aplicativos, e uma empresa não pode mostrar publicidade de seu creme de barbear ou qualquer outro produto aleatório, por exemplo.
As regras podem valer para você, mas não para mim
As coisas ficam um pouco piores quando se trata de anúncios que a Apple mostra em seus aplicativos nativos de notícias. Eles incluem publicidade tradicional, variando de joias a corretores de financiamento.
Para decidir os anúncios a serem mostrados a cada usuário, a Apple coleta os dados de sua conta, informações sobre as compras dentro da loja, entradas de pesquisa, notícias lidas por eles e informações sobre os seus dispositivos e localização. A Apple costumava coletar dados por padrão, mas a partir do iOS 15 a empresa passou a mostrar uma mensagem pop-up, pedindo o consentimento do usuário para autorizar a apresentação se ads personalizados nos aplicativos Apple.
Esta ação foi muito bem pensada, porém não afetou muito o negócio de anúncios da Apple. De acordo com MacRumours, a Apple informou seus anunciantes de que a taxa de conversão para os usuários do iOS 15 com ou sem a funcionalidade Personalized Ads ativada é praticamente a mesma.
Enquanto a Apple efetivamente rastreia os usuários em sua própria plataforma, os aplicativos pré-instalados não precisam mostrar uma mensagem pedindo permissão para rastrear os usuários.
Isso ocorre porque a Transparência Antirrastreamento da Apple aplica-se somente a aplicativos que utilizam dados de terceiros para rastrear os usuários. Com o rastreamento da Apple estando restrito ao seu próprio ecossistema, os apps nativos não estão sujeitos à sua política de privacidade. Esta exceção gerou críticas, principalmente ao se comparar a assustadora mensagem exibida em apps desenvolvidos por terceiros com o aviso muito mais sutil de "anúncios personalizados" exibido pela Apple.
A Apple já deu a entender que outros apps de desenvolvimento interno poderão exibir ads em breve. Conforme informado, a empresa planeja colocar anúncios em seus apps de Mapas, livros e Podcasts..
Também há rumores de que a Apple também esteja planejando desenvolver sua própria plataforma de mapeamento de demanda, ou demand-side platform (DSP), que tornaria possível a compra e venda de anúncios em tempo real. Se isso for verdade, quer dizer que a Apple está investindo fortemente no mercado da tecnologia anúncios, algo que a empresa sempre evitou. As plataformas Google Marketing e Facebook Ads Manager são bons exemplos de DSP. Até agora, não está claro se o DSP da Apple ficará limitado a oferecer ads em seus próprios apps e App Store, ou se irá além. De qualquer forma, esperamos que ela não siga o exemplo de alguns de seus concorrentes e bombardeie seu feed de anúncios.
No fim das contas, a Apple não deixa dúvida de que está levando suas investidas em publicidade muito mais a sério do que há alguns anos. De acordo com o Financial Times, ela está investido em praticamente dobrar o número de empregados em seu time de anúncios, adicionando 216 novos funcionários aos 250 que já fazem parte da força de trabalho. As novas contratações incluem gerentes, engenheiros de dados, designers de produto e especialistas em vendas. Em sua missão de expandir-se no mercado de anúncios, a Apple apresenta previsões simplemente impressionantes: o grupo de pesquisa Evercore ISI publicou uma projeção de que o seu negócio de publicidade pode chegar a valer 30 bilhões de dólares até 2026.
Este avanço meteórico está ainda em processo, mas não seria plausível sem a ação tomada pela Apple diante de seus concorrentes sob o pretexto de um bem maior: a proteção de privacidade. Mas será que a política de privacidade ATT da empresa realmente alcançou o nível de segurança desejado?
Meta e Google se adaptam à realidade pós ATT
A política antirrastreamento da Apple pode ter representado uma grande desvantagem para anunciantes menos relevantes no mercado, mas os gigantes da tecnologia estão prontos para contornar a situação após o choque inicial.
O Google, que apresenta um oferecimento de ads muito mais diversificado do que a Meta e, por isso, é menos dependente de anúncios mobile, parece ter se ajustado muito bem aos mundo pós ATT. A funcionalidade anti-rastreamento da Apple não é suportada pelos anúncios de pesquisa do Google, que aparecem somente para aqueles que procuram pela compra de um produto ou serviço em particular. Por outro lado, ads que dependam de insights sobre o comportamento e os interesses dos usuários correm o risco de se tornarem menos específicos e, como consequência, menos efetivos.
Para a alegria do Google e a tristeza de usuários preocupados com privacidade, a empresa desenvolveu novas tecnologias de rastreamento que ultrapassam os limites da proteção de privacidade. Uma nova tecnologia chamada Topics foi desenvolvida pelo Google para substituir cookies de terceiros e supostamente impedir que anunciantes identifiquem o usuário. Recentemente, nós demonstramos que não será bem assim.
Além do deselvolvimento de novas ferramentas, o Google está inciando uma verdadeira guerra não declada contra todos aqueles que buscarem interferir em seus anúncios. A nova plataforma de criação de extensões do Google Manifest V3 limita severamente a funcionalidade de bloqueadores de anúncios. Mas uma coisa é certa: esta situação não será aceita passivamente, sem luta. O AdGuard foi o primeiro do mundo a publicar recentemente uma extenção de bloqueadores de anúncios desenvolvida no Manifest V3, e você pode ler mais sobre ela aqui. O Google também vem criando algumas dificuldades para apps com Ad Blocker. Uma versão atualizada da política da Google Play Store proíbe que apps de VPN "manipulem anúncios que possam impactar na monetização de apps". A política entrará em vigor em 1º de novembro.
Foto: Rubaitul Azad/Unsplash
O Google ainda encontrou uma outra forma de assegurar o funcionamento de seus anúncios ao exigir que os usuários criem uma conta em sua plataforma como requisito para a utilização de seus produtos smart tech. A partir de 2025, uma conta de Google será necessária o uso do Fitbit, um dos acessórios para acompanhamento de atividade física mais populares do mundo.
No caso da Meta, a empresa de Mark Zuckerberg vem trabalhando em soluções para perpassar a ferramenta antirrastreamento. Os apps do Instagram e do Facebook para iOS encaminham links externos para o seu próprio navegador in-app, em vez de usar o navegador Safari nativo da Apple. Pesquisas demonstraram que a Meta insere um código em cada site visitado em seu navegador interno, o que permite que você seja potencialmente rastreado durante a navegação. A empresa insiste que esta ação está de acordo com a política de privacidade da Apple, mas mesmo assim está sendo processada por usuários sob a acusação de ignorá-la.
No entanto, os dados compartilhados pela Appsumer sugerem que a Meta está se recuperando após o retrocesso gerado pela ATT, e sua share-of-wallet aumentou no início de 2022.
Embora nada disso faça da Apple uma vilã, a empresa prejudica sua própria imagem como empresa que privilegia a privacidade e tem a experiência do usuário como prioridade. O ramo da publicidade é muito lucrativo, e pode-se dizer que era apenas questão de tempo até que a Apple se rendesse a ele. Mas o fato de que ela parece estar tentando ganhar vantagem diante de seus concorrente ao afirmar que protege a privacidade do usuário parece, no mínimo, desonesto.f